Numa aula de violão com Baden Powell

Os parceiros Vinicius e Baden em Paris, em 1964 Foto: Pedro de Moraes

Dar aulas é uma atividade que complementa a renda de muitos de nossos instrumentistas. Dos maiores, inclusive. A necessidade de subsistência, sempre ali, a tirar o sono dos artistas brasileiros, num país em que a cultura carece até hoje de dignos incentivos. Com o violonista e compositor Baden Powell não foi diferente. Mesmo depois de gravar o seu primeiro disco, e de ter iniciado a parceria com o poeta Vinicius de Moraes, o músico não conseguia viver exclusivamente de sua arte. Ensiná-la, então, era preciso.

Dentre alguns dos alunos de Baden, havia um homem que dava trabalho ao professor. Era pontual, aplicado, amava o violão. Mas era também antimusical, daqueles que não conseguem sequer bater palmas dentro de um determinado ritmo. Até as tarefas mais simples eram um tormento para o rapaz, que nada aprendia, e as aulas sempre terminavam em decepção, para o aluno e para o professor. Baden pensou, então, o exercício mais simples que poderia passar ao rapaz. Deste ele não vai escapar!*

Eram dois acordes apenas, a preparação Ré Maior e Lá com Sétima – com uma simples batida de samba na mão direita. Para facilitar, dois formatos (D6/F# e A7), que mantinham a mesma configuração dos dedos indicador (1) e médio (2) da mão esquerda, a que faz as posições no braço do instrumento. Vejamos nas figuras:

D                               A7

Era, portanto, preciso apenas descer e subir os dois dedos, na mesma posição, mantendo a cadência do samba. Mas o rapaz ainda tinha dificuldades, e durante toda a aula o aluno e o professor repetiram insistentemente os dois acordes, um de frente para o outro. Aos poucos, uma melodia começou a ser criada por Baden Powell – e o compositor vinha se intrometer nas atividades do professor de violão. A melodia era bonita, mas parecia presa à limitação dos dois acordes, não caminhava para uma segunda parte.

O exercício se repetia, e nada de o aluno aprender. Baden tocava e tocava, buscando o complemento da melodia, já seduzido pela composição. Terminada a aula, o aluno foi embora decepcionado, mais uma vez. Já Baden saiu feliz a procura de Vinicius de Moraes. No apartamento do poeta, mostrou-lhe a melodia. Embora não sugerisse uma segunda parte, a música era hipnótica e provocava certo transe. Como um mantra, ou melhor, uma oração, um samba em forma de oração. Dali a pouco estava pronto o Samba da Bênção.

Um clássico da música brasileira, detonado por um anônimo, que talvez nunca tenha aprendido a tocar a canção. Mas sua contribuição existiu. “Samba da Bênção” é uma composição sofisticada e simples – adjetivos que só os gênios conseguem conjugar numa mesma obra de arte.

“Samba da bênção” em francês

Os principais alunos de Baden Powell foram seus dois filhos, Philippe Baden Powell e Marcel Powell. Nasceram na França, onde o pai viveu parte da vida. Depois da consagração nacional, principalmente após o lançamento do disco “Os Afro-Sambas” (1966), com Vinicius de Moraes, Baden Powell seguiu para a Europa, e escolheu Paris para morar. Consta que a passagem usada foi trocada pela que recebera do Itamarati, anos antes, para ir ao show de bossa nova no Carnegie Hall.

Na capital da França, depois de tocar em pequenos bares e restaurantes do bairro boêmio Quartir Latin, Baden Powell chamou atenção de um público especializado ao fazer uma participação num show do cantor francês Jacques Brel. Empresários, produtores e gravadoras passaram a assediá-lo. Foi o começo para a consagração internacional.

Quem arranjou a participação no espetáculo foi o cantor, compositor e produtor francês Pierre Barouh, admirador de Baden Powell. Barouh ainda conseguiu o visto permanente para o amigo permanecer na Europa, e fez uma bela versão em francês do “Samba da Bênção”, que ouvimos aqui, com o título de “Samba Saravah”.

Apaixonado pela música brasileira, Pierre Barouh veio ao Brasil com Baden Powell, no fim dos anos 60. Guiado pelo violonista, fez registros históricos de Pixinguinha e João da Baiana. Também filmou Paulinho da Viola e Maria Bethânia, os dois bem jovens. O documentário tem uma hora e meia de duração. Chama-se “Saravah”, de 1969.

* O violonista Marcel Powell conta o episódio no espetáculo “Só Baden”

 

Créditos adicionais:

Foto de capa: Arquivo / O Globo

Vídeo de “Samba da bênção” (Baden Powell e Vinicius de Moraes). Arquivo da TV Globo. Postado no YouTube por calulinho

Vídeo com a música “Saravah”, versão em francês de “Samba da bênção”. Autor: Baden Powell, Vinicius de Moraes e Pierre Barouh. Da coletânea “Saudade (un Manque Habité)”, de Pierre Barouh, selo Saravah, 2003. Postado no YouTube por Jonathan Reverón

Vídeo com o filme “Saravah”, de 1969. Direção: Pierre Barouh. Postado no YouTube por Alexandre Camões

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