O protesto legítimo de quem sofreu na pele

A voz rasgada, rouca, gritou, mais uma vez: “Covardes, covardes!”. Cinco bailarinos negros no palco. Seminus, se entrelaçavam nas cordas que pendiam do alto da cadeira de onde Elza Soares protestava. Eram como correntes, e o palco do teatro Oi Casagrande, no ponto alto do espetáculo, parecia um navio negreiro, ou um camburão. Estávamos no lançamento do disco “A mulher do fim do mundo”, em que a artista, de 78 anos, confrontou a sua história pessoal de lutas com o presente conturbado de uma sociedade violenta.

Mais cinco negros foram mortos covardemente. Mais cinco crianças foram mortas covardemente. Covardes! Covardes! Mataram mais cinco crianças inocentes. Mataram mais cinco meninos porque eram negros, porque tinham a pele negra, a pele negra, a pele negra…

Os cinco bailarinos, aos pés de Elza Soares, simbolizavam Wesley Castro Rodrigues, Cleiton Corrêa de Souza, Carlos Eduardo da Silva de Souza, Roberto de Souza Penha e Wilton Esteves Domingos Júnior, que dirigia o carro em que todos foram fuzilados e mortos por policiais militares, em Costa Barros. Tinham entre 16 e 25 anos. Os PMs foram presos. E o caso parece ter caído no esquecimento.

 A carne mais barata do mercado é a carne negra

O verso poderoso de “A carne”, de Marcelo Yuka e Seu Jorge, ecoava no teatro. Era o pano de fundo para o protesto da artista. Quando a música terminou, um breve silêncio seguido pelos gritos, que agora vinham da plateia: “Covardes… Filhos da puta!”. O público já havia sentado, depois de aplaudir de pé as palavras de indignação da cantora, que, de cabeça baixa, ouvia calada a resposta da plateia.

O que se passava em seu pensamento? Mãe aos 12 anos e viúva aos 21, já com quatro filhos para criar, qualquer semelhança com sua dura trajetória não é mera coincidência. Além da indignação, Elza Soares expressava a solidariedade de quem sofreu na pele. Não só o racismo, mas também a violência doméstica. E o show prossegue com “Maria da Vila Matilde”, que começa com uma referência ao Ligue 180, o canal para denúncias da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. No final da música de Douglas Germano, outro recado:

Mulheres, se liguem, por favor, denunciem, gritem. Mas tem que gritar mesmo, de verdade, não apanhar calada porque isso já não existe mais. Não só apanhar, ofensas verbais também, tudo isso é agressão. Então, tem que denunciar. Gemer só de prazer, por favor

Agora confessional, o show prosseguiu com “Volta por cima”, de Paulo Vanzolini, que amarrou o espetáculo. É Elza Soares a intérprete mais adequada para o famoso refrão: “Reconhece a queda, e não desanima…”. Antes de retomar a música, enquanto os músicos repetiam a introdução, disse ao público: “Só eu sei o quanto eu chorei, mas dei a volta por cima. Só eu sei o quanto me custou, só eu sei…”.

O protesto de Elza Soares é natural e necessário. Mérito para Guilherme Kastrup, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Rodrigos Campos, os músicos e compositores que a acompanham no novo trabalho. Artistas com espírito de vanguarda e conectados com as reivindicações da sociedade, que acabaram por encontrar a intérprete ideal.

Saímos do espetáculo pensando no vigor que a artista ainda conserva e na chacina de Costa Barros, e lembramos que os PMs que executaram os cinco jovens também são negros e pertencem à mesma classe social. Ocasião que nos ocorre outro verso de Marcelo Yuka (em “Hey Joe”, a versão feita em parceria com Ivo Meirelles):

Também morre quem atira

 

Créditos adicionais:

Foto de capa: Bernardo Costa / coisasdamusica

Vídeo produzido pelo Canal Curta! Registro do show “A mulher do fim do mundo”, Teatro Oi Casagrande, Rio, 02/12/2015. Postado no YouTube por Canal Curta!

Vídeo com a música “Maria da Vila Matilde”, de Douglas Germano. Do CD “A mulher do fim do mundo”, de Elza Soares, selo Circus, 2015. Postado no YouTube por circusproducoes

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