Memórias de Arnaldo DeSouteiro – Parte I

Ojornalista e produtor Arnaldo DeSouteiro começou sua coleção de discos aos 4 anos de idade. Mal aprendera a falar e o filho de Walter Souteiro e Delza Agrícola desenvolvera um hábito que preocupava os parentes: ajoelhado na sala de casa, a criança rodava os discos no tapete enquanto cantava as músicas dos LPs dos pais. Glenn Miller, por exemplo, tocou no chão do apartamento da família naquela época, na Rua Frei Solano, na Lagoa, na Zona Sul do Rio. Era o ano de 1967.

– Mas isso não pode, Arnaldo, vai acabar arranhando os discos – era a tia Elge Agrícola quem chamava atenção.

O episódio da vitrola imaginária apresenta um homem cuja relação com a música é vital desde a infância. O tempo passou e Arnaldo DeSouteiro fez da paixão profissão. Sua coleção, hoje com cerca de 25 mil títulos, conta com muitos exemplares produzidos por ele com a participação de artistas que sempre admirou: uma lista em que aparecem João Gilberto, Eumir Deodato, Herbie Hancock, Tom Jobim, João Palma, John McLaughlin, Ron Carter, Luiz Bonfá, João Donato e Claus Ogerman, entre outros.

– Chamo isso de sincronicidade – diz Arnaldo DeSouteiro nesta entrevista ao portal Coisas da Música, nos jardins do restaurante Vegan Vegan, no Humaitá.

É assim que Arnaldo justifica o que muitos classificariam como coincidência:

– Quando criança eu ligava para a discoteca da Rádio Jornal do Brasil e falava com um funcionário chamado Seu Toledo. Eu perguntava a ele sobre os discos cuja audição me encantava. Muitos anos depois, fui entrevistado na Globo FM, já como produtor conhecido, e lá estava o Seu Toledo. Perguntei a ele: “Você lembra de um menino chato que ligava pro senhor? Pois é, sou eu”.

Arnaldo DeSouteiro na área externa do restaurante Vegan Vegan, no Humaitá Foto: Bernardo Costa/coisasdamusica

Arnaldo DeSouteiro durante entrevista ao portal Coisas da Música Foto: Bernardo Costa/coisasdamusica

Casa musical

Tia Elge tinha razão. Não era de bom tom que o garoto arranhasse os discos dos pais na sua vitrola imaginária. Melhor seria lhe dar os próprios LPs. Mas aí vinha outro problema: desajeitado como toda criança, Arnaldo poderia causar algum dano no toca-discos da família. Qual feliz não ficou o menino ao receber o seu primeiro equipamento, aos 5 anos de idade. Foi a solução para evitar algum incidente doméstico e ao mesmo tempo aplacar o arrebatamento da criança por música.

Arrebatamento este que começa em casa. Delza Agrícola, sua mãe, era pianista, compositora e regente, o que fascinava Arnaldo.

– Ela foi a primeira brasileira a se formar em regência no Conservatório Brasileiro de Música e apresentava um programa na Rádio MEC em que executava obras como “Carnaval Opus 9”, de Schumman, ao vivo, sem poder errar. Com minha mãe, tive aulas de piano clássico e harmonia dos 4 aos 12 anos.

Aos sábados, Dona Delza ou tia Elge, também pianista; ou o pai, bancário e pianista amador, deveriam acompanhar Arnaldo no passeio de que mais gostava: ir a lojas de discos. O garoto saía com um lista na mão e o coração acelerado. Buscava o que ouvia na Rádio JB AM, então programada pelo radialista Simon Khoury.

– Nos anos 1970, só em Copacabana havia umas 20 lojas de discos. Eu saía do Posto 6 e andava pela Avenida Copacabana até o Leme. Depois voltava pela Barata Ribeiro e passava pela Modern Sound, Billboard e Symphony, que eu chamava de “triângulo das bermudas”. Tudo que eu não encontrava nas outras lojas, eu encontrava nelas. Tinha também o sebo Discadoro, na esquina da Rainha Elizabeth com a Avenida Copacabana.

A Bad Donato

Há pelo menos um telefonema para Seu Toledo de que Arnaldo se recorda. Numa longínqua tarde do início dos anos 1970, o solícito funcionário da Rádio JB atendia a mais um telefonema:

– Olá, garoto, o disco que você ouviu é da gravadora Blue Thumb e se chama “A Bad Donato”. É importado!

Quando ouvia a palavra “importado”, Arnaldo DeSouteiro sentia-se desolado:

– Eu ficava louco, porque sabia que iria levar meses para o LP chegar às lojas – lembra o produtor, mais de três décadas depois.

Arnaldo, aos 14 anos, posa ao lado do Maestro Gaya e sua esposa Stellinha Egg Foto: Álbum de família

Passo seguinte

– Alô? É o Maestro Gaya quem está falando? – agora Arnaldo DeSouteiro, com ajuda de um catálogo telefônico, buscava contato com seus ídolos.

Um dos primeiros a receber uma ligação de Arnaldo, então com 11 anos, foi o maestro Lindolpho Gaya, arranjador e diretor musical da gravadora Odeon:

– Sim, pois não? – atendeu o maestro.

– Olha, eu sou seu fã, tenho os seus discos com fulano, fulano, fulano, fulano… – enumerava o garoto do outro lado da linha, de forma incontida.

O maestro sabia que não era um trote.

– Que maravilha, menino! Você tem o meu disco só com standards de jazz em que eu toco órgão hammond? Não!? Ah, você vai adorar – dizia.

Estava estabelecida a relação, inclusive com a esposa de Gaya, a cantora, compositora e atriz Stellinha Egg. O casal fazia visitas a Arnaldo e o presenteava com discos e convites para espetáculos. Mais até: Gaya passou a levar o jovem fã para os estúdios de gravação. É quando o produtor fonográfico começa a ser talhado.

Arnaldo DeSouteiro com Eumir Deodato no sofá de casa, em 1980 Foto: Álbum de família

Eumir Deodato

Com Eumir Deodato se deu algo parecido. Dessa vez, o contato foi por intermédio do pai de Arnaldo, que havia comentado no trabalho sobre a expectativa do filho em torno da vinda ao Brasil do pianista e arranjador radicado nos EUA desde o fim dos anos 1960.

– É mesmo? Eu conheço o Eumir, ele é meu cunhado – disse Diniz Baptista, então colega de trabalho de Walter Souteiro no Banco Itaú e hoje proprietário do Banco Modal.

– Poxa, se você conseguir fazer com que o Eumir receba o Arnaldo, vai ser um presente na vida do garoto, porque ele me inferniza com esse troço. Quem sabe ele não se acalma um pouco – pediu Walter, em tom de súplica.

Aí está a sincronicidade, ou “coincidência significativa”, nos termos do psiquiatra Carl Gustav Jung: Deodato viera ao Brasil para gravar o clipe de “Also Sprach Zarathustra (2001)” para o Fantástico, da Rede Globo. Durante as filmagens, no Jardim Botânico, o artista quebrou a perna ao correr de tamancos entre as árvores e teve que cancelar seu retorno aos Estados Unidos. Pôde, então, receber o jovem fã.

No dia do encontro, Arnaldo DeSouteiro mostrou-se diferente do que se poderia esperar de um garoto de 11 anos. Apareceu com uma filmadora Super 8 e perguntas do tipo: “Como é o Creed Taylor?”, “Por que no disco In Concert não tem ficha técnica?”, “Quem são os músicos?”, “Como o Rubens Bassini, que eu conheço dos LPs do Waldir Calmon, foi parar no seu conjunto?…”

O vídeo é um dos itens de seu fantástico acervo.

Parte II

Na próxima semana, será publicada a segunda parte da entrevista de Arnaldo DeSouteiro ao portal Coisas da Música. Mostraremos aspectos de seu trabalho como jornalista, produtor e empresário.

 

Créditos adicionais

Vídeo “Arnaldo DeSouteiro – Memória afetiva” – Músicas utilizadas na edição: “Manhã de carnaval” (luiz Bonfá e Antônio Maria), do LP “The Bonfá Magic”, gravadora Caju Music, 1992; “In the mood” (Joe Garland e Andy Razaf), do LP “The Glenn Miller Orchestra – Greatest hits (1938-1942)”, RCV Victor, 1996; “Serenade in blue” (Harry Warren e Mack Gordon), do LP “Ithamara Kooraz – Serenade in blue”, 2000. Edição, entrevista e imagens: Bernardo Costa. Tratamento de áudio: João Matheus Pires / portal Coisas da Música 

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1 Resultado

  1. Arnaldo, gostei de saber suas histórias e de sua mãe pianista! Seu contato foi-me passado pelo Mestre Angoleiro. Sou músico profissional, Mineiro de Juiz de Fora. Somos contemporâneos, eu de 1960 e você de 1963!
    Inventei um teclado “sem som” para ensinar música a partir da perspectiva popular… se houver interesse, lhe explico. Chama-se TEDEM – Teclado Didático para Educação Musical. Gravei também alguns discos autorais com uma turma maravilhosa de músicos. Abraços, Estêvão Teixeira (flautista/pianista/compositor)

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