Meu encontro com Severino Filho (1928-2016)

Severino Filho, nos bastidores de um show no Arpoador Foto: Neil

Severino Filho nos bastidores de um show no Arpoador, em 25 de outubro de 2015 Foto: Neil Carlos

Quando ficamos de pé, lado a lado, para a pose da foto acima, Severino Filho compreendeu meu olhar. Não falei nada, porém o maestro percebeu certo ar de espanto na minha fisionomia e saiu-se com esta: “Estou com 87 anos, hein”. Espantei-me também com a sagacidade do artista, pois de fato eu estava impressionado com sua vitalidade – afinal, havíamos acabado de conversar sobre episódios vividos por ele na década de 1940! O espanto maior, no entanto, veio nesta terça-feira, com a notícia de sua morte, em plena capacidade criativa.

Severino Filho, líder e fundador do conjunto vocal Os Cariocas, tinha planos. De estudar inglês, inclusive.

– Hoje eu estou destreinado, mas vou fazer uns cursinhos rápidos, pois temos umas viagens por aí – disse Severino ao portal Coisas da Música, nos bastidores de seu último show, no Arpoador: – O Marcos Valle, por exemplo, quer nos levar para Cingapura e falou assim: “Você aguenta, Severa?”. É lógico que eu aguento.

Infelizmente não deu tempo. Como também não deu para encontrar Severino outras vezes. Sem câmera – não contava que teria acesso ao artista – pude apenas pedir para que Neil Carlos, integrante do conjunto, fizesse a foto momentos antes de o maestro entrar no palco. Ficou o registro do celular. Data: 25 de outubro de 2015.



A estreia profissional

“Nova ilusão” (José Menezes e Luiz Bittencourt) e “Adeus América” (Haroldo Barbosa e Geraldo Jaques) foram as primeiras gravações de Os Cariocas, em 1948. Severino tinha 20 anos de idade e dois de carreira, pois desde 1946 o conjunto fazia parte do elenco da Rádio Nacional. Sua morte, portanto, acontece em meio às comemorações dos 70 anos de sua estreia profissional, ao lado do irmão Ismael Neto, também fundador de Os Cariocas, Badeco, Quartera e Valdir.

No camarim, sentado em um sofá, Severino cravou a data da assinatura do contrato com a Rádio Nacional: 14 de fevereiro de 1946. E, enquanto pegava um sanduíche – “você quer um?”, ofereceu o maestro -, lembrou-se do teste diante do grande time da emissora:

– Olha a banca examinadora: Radamés Gnattali, Lyrio Panicalli, Leo Perachi, Paulo Tapajós, Haroldo Barbosa e José Mauro, uma banca de respeito. Lembro que de vez em quando eu olhava pra eles e via que estavam sorrindo. Aí acabamos de cantar e disseram que entrariam em contato. 15 dias, ou 20 dias depois, nos chamaram pra assinar.

Chegou a bossa nova

Os Cariocas foram pré-bossanovistas, como Dick Farney, Lúcio Alves e Johnny Alf. Quando os compositores da bossa chegaram, contou Severino, o conjunto foi procurado para que gravasse suas músicas. Foi assim que, em 1957, o quinteto vocal gravou “Criticando”, de Carlos Lyra, uma espécie de primeira versão de “Influência do jazz”:

– Isso acontecia porque, desculpe a modéstia, nós já éramos avançados.

João Gilberto, quando ainda fazia parte do Garotos da Lua, também se aproximou de Os Cariocas.

– Ele era maluco pelos arranjos do meu irmão, e nos tornamos muito amigos. Lembro que nós saíamos, fazíamos gravações, passeávamos também, para namorar umas garotas… – disse Severino, entre risos.

João Gilberto, inclusive, foi quem bateu o pé para que o conjunto participasse da histórica temporada de shows que fez com Tom Jobim e Vinícius de Moraes no extinto restaurante Au Bon Gourmet, em 1962. Foi durante o espetáculo, chamado “O encontro”, que “Garota de Ipanema” foi apresentada ao público.

No vídeo a seguir, são reproduzidas as gravações de “Garota de Ipanema” e “Devagar com a louça”, feitas no dia 2 de agosto de 1962. Além de João Gilberto, Os Cariocas, Tom e Vinícius, participaram da temporada o baterista Milton Banana e o baixista Octávio Bailly. O LP foi editado pela gravadora Elenco.

– O João Gilberto brigou com o Aloysio de Oliveira (produtor do show e dono da Elenco) para que nós fôssemos – lembra Severino

O movimento aumenta no camarim, os músicos se aquecem, afinam os instrumentos, passam de um lado para o outro. Hora de interromper a entrevista e deixar que Severino também se prepare para aquela que, hoje sabemos, seria uma de suas últimas apresentações.

 

Créditos:

Foto de capa: Neil Carlos / Portal Coisas da Música

Vídeo com “Nova ilusão”, música de José Menezes e Luiz Bittencourt. Lado A do disco de estreia de Os Cariocas. 78 rpm. Gravadora Continental, 1948. Postado no YouTube por luciano hortencio

Vídeo com “Adeus América”, música de Haroldo Barbosa e Geraldo Jaques. Lado B do disco de estreia de Os Cariocas. 78 rpm. Gravadora Continental, 1948. Postado no YouTube por George Kaplan

Vídeo com “Criticando”, música de Carlos Lyra. Gravadora Continental, 1956. Postado no YouTube por nostalgia anos dourados

Vídeo com “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius, e “Devagar com a louça”, de Haroldo Barbosa e Luiz Reis. Postado no YouTube por ProjetoBossaNova

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4 Resultados

  1. Gabriel Tardelli disse:

    Parabéns, meu amigo! Faz jus ao jornalismo que acredito ser relevante, saudável e imprescindível. Preservar, revitalizar e vivificar a música brasileira é trabalho de artesão: exige técnica, perspicácia e parcimônia. Vida longa ao Coisas da Música!

  2. Mario Gatti disse:

    Excelente a iniciativa de Coisas da Música, em trabalho de garimpo, defesa da memória e valorização de nossa rica música. Sem saudosismo, como era bom esse tempo de música … Siga forte Bernardo. Abração

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